#NaMídia – Iniciativa pretende levar mais recursos a periferias e favelas

Democratização e descentralização do investimento social privado mobiliza entidades
Por Denise Neumann — Para o Valor, de São Paulo

A foto mostra três pessoas, dois homens e uma mulher e, ao fundo, uma comunidade

Crédito da imagem: Valor Econômico

Em 2020, no auge da pandemia, quase R$ 7 bilhões foram mobilizados no país em recursos de filantropia e investimento social privado. Esse valor representou um aumento entre 70% e 95% em relação ao ano anterior, dependendo da base de comparação. Além do volume recorde, a mobilização no primeiro ano de pandemia refletiu uma pulverização inédita: mais de 2 mil organizações da sociedade civil foram apoiadas, número três vezes maior que o de 2019. A preocupação de que, passada a emergência, o repasse de recursos dos grandes investidores sociais e filantropos volte ao padrão anterior, motivou a Iniciativa Pipa a lançar uma “carta aberta à filantropia brasileira” no fim de julho. O documento, que nasceu com mais de 40 assinaturas de apoio de diferentes entidades, propõe um debate sobre a importância de democratizar e descentralizar o investimento social privado e fazer com que ele seja acessível às organizações, coletivos e movimentos nascidos nas periferias e favelas e considere raça e gênero.

Gelson Henrique, coordenador executivo da Iniciativa Pipa, conta que o movimento nasceu em 2019, mas a reflexão proposta por seus membros ganhou visibilidade durante o combate à pandemia, momento no qual as organizações localizadas nas periferias se mostraram um braço fundamental no apoio às suas comunidades e para fazer com que os recursos da filantropia e do investimento social privado chegassem à população mais vulnerável.

Passada a pandemia, contudo, um levantamento da Pipa com cem organizações da sua base mostrou que 90% delas possuem barreiras para acessar diferentes formas de financiamento e 33% informaram que contam com orçamento anual inferior a R$ 5 mil. “Esse levantamento confirmou que a forma como o investimento filantropo está sendo alocado, acaba por reforçar a desigualdade de raça, gênero e território no país”, avalia Henrique, que também é co-fundador da Pipa junto com Marcelle Decothé e Raull Santiago, entre outros integrantes de organizações sociais.

A Iniciativa Pipa coloca a carta como um “convite” para que fundações privadas e familiares, empresas e doadores individuais repensem as políticas internas e deem prioridade à contratação de perfis negros, periféricos, LGBTQIA+ e de mulheres para a gestão dos seus portfólios e, ao mesmo tempo, adotem um modelo de doação e repasse de recursos que valorize o fomento a iniciativas negras, periféricas e com recortes de raça e gênero. Os seus integrantes têm marcado conversas com institutos de investimento social para dialogar sobre a descentralização dos apoios.

Para que a democratização dos repasses ocorra, diz Henrique, é preciso também que os próprios editais sejam mais acessíveis. Um dos eixos de atuação da Pipa, explica, é promover ações de capacitação das organizações de base periférica e favelada para que elas entendam como captar e gerenciar recursos e prestar contas, atendendo ao compliance exigido pelos investidores sociais. “Mas também é preciso que novas ferramentas e novos modelos de editais sejam adotados para facilitar o acesso a esses recursos”, defende Henrique.

A Fundação Tide Setubal é uma das organizações que assina a carta aberta da Iniciativa Pipa porque tem um alinhamento com a reflexão sobre quem tem acesso ao investimento social privado e a necessidade de democratização dos recursos, explica Guiné Silva, coordenador de fomento a agentes e causas da Tide Setubal.

Além do aumento de recursos em 2020, diz Silva, as ações de combate à pobreza e à fome, a busca de programas de geração de renda e o fortalecimento da sociedade civil, que compuseram uma tríade de enfrentamento dos efeitos negativos da pandemia sobre as populações mais vulneráveis, reforçam a reflexão proposta pela iniciativa Pipa. “2020 nos fez olhar para uma rede de organizações, formalizadas e não-formalizadas, de pessoas negras no Brasil inteiro. Foram elas que conseguiram, de maneira ágil, se articular e fazer com que os recursos do campo social chegassem no território”.

Henrique observa que as organizações das periferias “são alinhadas com as demandas dos territórios, o que nem sempre acontece com as organizações que vêm de fora, que muitas vezes trazem a sua agenda”. E essa proposta, diz ele, muitas vezes não está conectada com a realidade daquele local, daquele grupo, daquela comunidade. “Acaba chegando de uma forma hierarquizada”, explica.

Dados inéditos do investimento social privado em 2021, compilados pela Comunitas, que atua no aprimoramento dos investimentos sociais corporativos, mostra que parte da pulverização de apoio de 2020 se manteve. Segundo do Benchmarking do Investimento Social Corporativo (Bisc), em 2021, 36% das organizações apoiadas pelas entidades receberam entre R$ 3 mil e R$ 14 mil, percentual que foi de zero em 2020 (na pandemia, os repasses aumentaram), 20% em 2019 e 12% em 2018.

Patricia Loyola, diretora de gestão e investimento social da Comunitas, diz que a pesquisa não permite identificar o perfil das entidades beneficiadas por essa pulverização, mas observa que a pandemia deu visibilidade às organizações que existem nas favelas e sua capilaridade. Em 2020, estima Loyola, o investimento social privado alcançou quase R$ 7 bilhões, quando se somam as bases da própria Comunitas e as do Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife), descontando os valores que aparecem nos dois censos.

Para Silva, da Fundação Tide Setubal, é importante colocar no radar do investimento social uma série de organizações que não estão no mapa, mas têm potencial de impacto, relevância e representatividade no território. “Quando o investimento consegue ter um componente de cor e raça no seu portfólio é possível começar a entender quais são os desafios que estão colocados em um país tão desigual como o Brasil”, argumenta.

Apesar da potência das organizações de periferia e das favelas, Loyola avalia que existe uma barreira do compliance dos investidores sociais, que foi flexibilizada durante a pandemia. “Os comitês de emergência, durante a crise, conseguiram fazer coisas que antes eles não tinham liberdade para fazer”, pondera, ressaltando que percebe a preocupação dos investidores em fortalecer essas organizações, especialmente aquelas que atuam em políticas públicas.Para Silva, o investimento social privado vai ganhar potência se abrir espaço nos cargos de liderança dos institutos e fundações para a diversidade, para negros, mulheres, comunidade LGBT, entre outros que têm sido historicamente marginalizados, e se entender que também seus mecanismos de repasses precisam ser revistos.

*Texto produzido e publicado originalmente no Valor Econômico

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